José
Martino é ficcionista e poeta. Formado em Letras pela Universidade de
São Paulo (USP), mora na cidade de Atibaia, integra o Coletivo Quatati
e é sócio correspondente da ASES – Associação de Escritores de Bragança
Paulista. Possui diversos prêmios literários por todo o Brasil e os
seguintes livros:
Adeus ao Vento (Romance)
A Noite Negra (Romance)
A Pedra (Romance inédito)
Insânia – O Romance da Nossa Geração (Romance)
O Priorado de Salomão (Romance)
Histórias do Fim do Mundo (Novela humorística)
Não Perturbe as Coisas em Silêncio (Contos de Terror - inédito)
Contos Macabros à Luz de Velas (Contos de Terror)
As Muito Fabulosas Aventuras do Barriga (Contos de Humor)
Sofialóris, Vá se Vestir, Menina! (Contos de Humor)
Contos Maus (Contos)
Memorial do Bruxo – Uma Biografia de Machado de Assis (Biografia inédita)
Raul Pompeia – Uma Vida Atormentada (Biografia inédita)
Manual do Poeta Aprendiz (Teoria Poética - Inédito)
Como Vencer Concursos Literários (Teoria Literária – inédito)
A Horripilante Medicina da Idade Média (História)
1348 – A Peste Negra (História)
1789 – A Inconfidência Mineira e a Vida Cotidiana nas Minas do Século XVIII (História)
Quando Voltarmos a Ser Pássaros (Poesia)
Contato: timmarvim@gmail.com
Facebook: https://www.facebook.com/tim.marvim
Deus pequeno
Meu deus pequeno de pés descalços,
Aveflor a cifrar a cantata dos abismos
Nos amanheceres de orvalhadas luas
Entre avencas e citronelas
E ninfas vestidas de espuma,
Detém o cocheiro que conduz
A maltrapilha caleça dos tempos,
Porque algo muito errado se passa
Nestas plagas de furados dias.
Olha no campinho, deus pequeno,
Olha no campinho...
Há pouco, um menino moreno
Empinava suas pipas coradas de vívida alegria
Como quem masca um favo de céu
E maritacas berravam palavras cegas
Contra os arqueiros dos ciprestes
Nos coqueiros que recolhem as tardes
Banhadas de sândalo e hortelã.
Sou feito de cinzas, deus pequeno,
Lembra-te?
Sou aquele inútil, que enfileira versos aleijados
Desde as eras dos dragões,
Quando as pedras caminhavam silenciosas
E os remos dos argonautas desnudavam ondas,
Mariscando conchas em praias eivadas de caranguejos.
Escuta, deus pequeno,
A voz de harpa ferida ecoando pelas fontes,
Onde moedas de ouro agora crescem inúteis
Como deitar cercas num pasto de formigas
E junta as migalhas dos rasgados sonhos
Deste menino moreno que vai subindo
Sem ter despido as asas da infância.
Há pouco foi morto
Em fogo de arcabuz e coices de mosqueteiro,
Cravando um ponto final neste poema que não termina...
Subiu num telhado para apanhar sua pipa
E lhe pregaram um tiro na cabeça...
Ninguém sabe...
Ninguém viu...
Mas o menino permanece estirado
Em nossas consciências sujas.
Nestas plagas amargas, deus pequeno,
Há um ditado ultrajante que diz
Que negro bom é negro morto...
(O menino que driblava ventos
Sonhava com pipas ondulando entre nuvens...
Há sangue em suas mãos geladas
E a linha do poema empina tragédias
Cortantes como cerol.)
Velhas sombras
Quando chegou a minha vez,
A chama estava fria
E as damas já dormiam empalhadas
Nas torres de enluvadas luas.
Desço pelas ruas perplexas de macadames,
Desbotados tobogãs queimando o silêncio
Por entre as sombras encaixotadas dos muros
E o cheiro da terra sangrada pela chuva,
Terra sagrada que incensa os céus capinados das aves
E nivela o passo do tordo ao estorninho.
Cresce a noite no adágio de violinos míticos,
Que dá ritmo às pernas do meu cavalo,
Feito manadas de antílopes em fuga
E cresce meu coração embriagado por incertezas nulas,
Ante a desprezível possibilidade dos anos
Terem deitado raízes no sal destes olhos,
Cobertos de espinhos.
Sigo por caminhos difusos,
Desviando das pedras que o tempo impõe
Ao outono dos homens.
Subitamente,
Paro diante da velha casa abotoada
Em sua formosa ruína,
Onde as aranhas floriram teias
Como ramadas de caramanchões
Sobre a lembrança dos dias felizes.
A amada não está mais ali,
Suspirando no alpendre ventilado de saudades
Pelo príncipe que apodreceu moço,
Enquanto cavalgava descuidado
Serpentes e ratazanas,
A juventude decotada a se decompor arisca
Como as velas do derradeiro aniversário
E a vida rodopiando sobre um cordão esticado...
Lá adiante,
Desce a noite
Com seu poncho de estrelas nuas,
Carregando as velhas sombras
Que cobrirão teus ossos.
Delírio
Não me lembro se foi sonho,
Se delírio ou algo mais;
Mas só sei que é verdade,
Eu vos juro por meus pais.
Numa noite tão terrível
Como nunca vi jamais,
Eu voltava da cidade
Pelos campos hibernais.
Rasga o céu a tempestade,
Uivam feros vendavais!
Só os raios me guiavam
Entre os negros matagais...
De repente meu cavalo,
Em pinotes colossais,
Me lançou com força à terra
Sobre imensos lamaçais.
Eis que surge uma caveira
Dentre as trevas sepulcrais
Com seus olhos cor de morte
Me lembrando funerais.
Uma voz tão tenebrosa
Ecoou dos capinzais,
Feito o grito de um demônio
Das cloacas infernais.
“- Cavaleiro, aonde ides?
Por aqui vós não passais!
Estes são os meus domínios,
Estes são os meus portais!
Pra cruzar estes caminhos,
Uma prenda vós me dais;
É o preço que vos cobro
Pra passar os meus umbrais!”
Tal visão me infundia
Tanto horror e medos tais,
Que mal pude responder
Em palavras textuais:
“- Eu vos dou o meu relógio,
Vem de velhos ancestrais;
Deixai, pois, o meu caminho,
Abri já vossos portais!”
E a caveira tenebrosa,
Em risadas guturais,
Respondeu com voz medonha
Das cavernas abissais:
“- Sábia escolha vós fizestes,
Tempo não mais precisais!
Vossa vida já não vale
Pelo tempo que contais...”
Em seus olhos coruscavam
Labaredas em punhais
E a caveira me dizia:
“- Quero mais... eu quero mais!”
“- Dou-vos todo meu dinheiro,
Leve até meus embornais,
Mas me ceda a passagem,
Abri já vossos portais!”
“- Sábia escolha vós fizestes,
Dele não mais precisais!
Seu dinheiro nada vale,
Pois aqui nada comprais...”
Em seus olhos cintilavam
Mil demônios bestiais
E a caveira insistia:
“- Quero mais... eu quero mais!”
“- Dou-vos todas minhas vestes,
Dou-vos tudo e algo mais,
Mas me ceda a passagem,
Abri já vossos portais!”
E seus olhos me fitavam
Como cem cobras corais.
E a caveira insistia:
“- Quero mais... eu quero mais!”
“- Filha pútrida das trevas,
Que a passagem me negais,
Nada mais tenho a vos dar
Pra cruzar vossos umbrais!”
E a caveira ainda ria
Com seus dentes desiguais,
Quando disse as palavras
Que soaram cruciais:
“- Verme vil, pois eu vos digo:
Pra passar os meus portais,
Quero apenas simplesmente
Tua alma e nada mais!”
O AMULETO
Certa vez, quando eu era estagiário no Museu de Arqueologia da USP,
ocorreu um caso singular. Dois professores medalhões da universidade
achavam-se bastante entusiasmadinhos com a recente descoberta, nos
dentros profundos da floresta amazônica, de alguns indivíduos da tribo
Tupinambu, que se acreditava extinta há quase cento e cinquenta anos.
Mais do que isto, empolgava-os a possibilidade de conversar com o pajé
dos Tupinambus em seu idioma, o qual imaginavam dominar, pois o
indígena fora convidado pela universidade para fazer uma visita ao
museu, onde havia alguns artefatos feitos pelo seu povo. A chegada do
velho pajé estava prevista para aquela tarde e os dois ilustres
professores queriam tirar uma dúvida com ele, a fim de resolver
definitivamente uma renhida contenda acadêmica entre aqueles venerandos
mestres. Havia no museu um curioso objeto que ninguém sabia exatamente
para que servia. Cada um deles já tinha escrito um calhamaço de mais de
800 páginas, defendendo o seu ponto de vista. O professor mais velho,
do cume de sua sabença prodigiosa que lhe arqueava as costas, era da
opinião que tal amuleto servia para conversar com os mortos. O menos
velho, mas também decrépito, que achava o outro uma boa cavalgadura,
dizia que o amuleto era utilizado para curar doenças. E durante mais de
trinta anos, desprezaram-se mutuamente por causa desta querela
infrutífera.
Quando o pajé chegou, os dois logo foram atormentá-lo com aquela
questiúncula que lhes consumia as almas. Apresentaram-lhe o amuleto. O
índio sorriu e disse:
- Sim, sei muito bem o que é isto...
- Então, proferiu o mais velho, vocês o empregam para invocar os mortos?
- Não, disse o menos velho, vocês usam este amuleto para curar os enfermos, não é mesmo?
O pajé apanhou o pequeno objeto em sua mão direita e respondeu tranquilo:
- Nada disso. Usamos para pitar...
E, tirando do bolso uns fenos de odor forte, acendeu o bagulho e passou a fumar deliciosamente.
QUATRO VELHINHAS
O relógio da sala acabara de bater meia-noite, quando uma delas
lembrou que precisavam terminar com aquilo o mais rápido possível. As
quatro velhinhas achavam-se sentadas em torno de uma mesa, onde havia
um morto deixado num dos cantos. Todas estavam apreensivas, mas nenhuma
delas parecia se importar com ele. Matilda apanhou a faca que havia
retalhado as carnes do presunto e resolveu lavá-la, pois não era de
largar serviço pela metade. Dinorá pegou todo o lixo acumulado e pensou
um pouco. Como estava com as mãos carregadas, perguntou onde podia
colocar aquilo tudo.
- Ponha ao lado daquela canastra até refletir melhor o que fazer...
Nisso, o telefone tocou ardido, abrindo um tremendo vazio na sala e deixando todas tensas. Quem seria uma hora daquelas?
- Ninguém atende! Ninguém atende! Senão, não terminamos isso hoje! Berrou Marocas, a dona do apartamento.
Lá embaixo, a sirene de uma viatura de polícia passou apressada,
desassossegando corações. Marocas levantou-se para fechar a cortina da
janela, que permanecia aberta. Como eram distraídas!
Quando regressou, não houve tempo para mais nada. Emília abaixou tudo o que tinha nas mãos e disse eufórica:
- Bati!
Enfim, puseram-se a contar os pontos das cartas daquele jogo de buraco.
*** *** ***
(TEXTOS DE JOSÉ MARTINO)