ÍNDICE     


ESCRITORES


Simone Pedersen


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Obsessão


Depois que romperam, todos os dias o telefone tocou exatamente à meia-noite.Ela sabia quem era. Conhecia a respiração ofegante. Ficava a escutá-lo por infindáveis minutos, somente para a consciência permitir-lhe dormir em seguida. O motivo ela nem sabia mais qual fora. Ciúme doentio, agressões verbais, humilhações públicas. Talvez, a culpa fosse do destino, como lhe dizia a cartomante. Morar no interior seria a última tentativa. Precisava se livrar da obsessão dele. Não desse certo, já havia se decidido a resolver a situação, ingerindo pastilhas de veneno para ratos. Foi de madrugada para não ser vista. Quando entrou na estrada, viu pelo retrovisor que um carro se aproximava, ao mesmo tempo em que o celular tocava insistentemente, mostrando o nome dele no visor. Descontrolada, entrou num posto de gasolina a procura de ajuda. Saiu do carro aos gritos e foi acudida pelos frentistas que não conseguiam entender o que ela balbuciava. Esclareceram que nunca haviam visto o carro que a perseguia, quando a polícia chegou. No celular, não havia registros de chamadas há treze dias. E treze foi o número de pílulas que ela ingeriu sem que ninguém percebesse enquanto abriam o porta-malas, para nele encontrar um corpo esfaqueado em estado de decomposição.


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AVE MARIA


O meu sonho sempre foi ser freira. Chamar-me Maria. Mas nasci com asas, sem ser anjo. Posso me aproximar de Deus de outra forma. Consigo subir até Sua casa.
Antes de a noite acordar pela manhã, as irmãs libertam a respiração do convento pelas janelas: “Tum-tum”, “Tum-tum”, escuto o coração do convento pulsando em reza. Ah, se não fosse ave, seria freira! Como é encantador ouvir os passos delas flutuando pelo piso frio do convento, como se voassem, sem abrir as asas. Logo começam as xícaras a tocar piano e eu sinto o aroma de café.

O convento é um grande ninho onde moram anjos em forma humana. Gosto de sobrevoar os telhados e sentir o calor que irradia pelas suas janelas. O próprio sol visita as suas dependências e depois se esparrama pelos seus pátios e frestas. Fico tão emocionada, que arrulho de encantamento.

Às vezes, sinto saudade do cheiro verde das matas e voo até lá. Como é extasiante sentir odores tão diferentes! A maresia, que salga as narinas. O café quente do convento. Os perfumes de banho dos humanos que andam de um lado para outro, como formigas trabalhadeiras. Sou mesmo uma ave privilegiada, testemunho a história desse povo todos os dias. De um lado, as doces beatas; do outro, o salgado mar de botas molhadas. O vento traz  folhas da mata, que acariciam os rostos dos homens. O chafariz respinga lágrimas de felicidade desse solo abençoado.

Outro dia, muitas nuvens se aproximaram do convento. Extasiada, deitei-me sobre o telhado e permiti que as águas doces me banhassem de todas as minhas decepções. Eu aceitei quem eu era. Como havia pessoas humanas e animais, havia eu, ave. Tantos similares e tantos diferentes, convivendo com árvores e mares, chuvas e risadas. Únicos e realizados. Filhos da natureza. Pais de nossos sonhos.


Eu sempre quis ser freira. Mas nasci ave. Acho que a vida foi muito generosa comigo. Não sou uma pomba qualquer. Sou uma ave brasileira, alegre como uma cigana, viajando entre o mar, a mata e a cidade, em um tapete mágico movido a vento. Sou uma ave maravilhada. Sou uma ave dessa terra santa.






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