ÍNDICE     


ESCRITORES


Simone Pedersen


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A BAILARINA NOTÍVAGA


Todos os dias, quando a noite cobre o sol com sua capa negra, Sofia, uma poodle de catorze anos de idade, aguarda a pontual visita de uma osga. Ela vem dançando pelo vidro da janela da sala. A cachorra rebola o rabinho e dá boas-vindas à bailarina notívaga.

No início, ela latia e tentava pegar a novidade. Mas novidades, com o tempo, tornam-se rotina; e assim, inteligente e resignada, ela hoje se alegra com a chegada da antes inimiga. Eu também me afeiçoei por essa bichinha acrobata. Se me dissessem antes que alguém gostava de um réptil, eu riria debochada. Com os anos, aprendi que tudo tem sua beleza, até uma albina miniatura de jacaré.

Nessas noites quentes de verão em erupção, tenho aberto a vidraça. A lagartixa surge encantadora como uma noiva em seu branco vestido bordado com estrelas cintilantes e comprido véu dançante, descansa na lateral aberta, mas não adentra. Nós duas sabemos que para coexistirmos em paz temos que respeitar limites.

Em alguns meses, mudarei de casa, na mesma cidade. A distância de poucas ruas será uma muralha chinesa entre o antigo e o atual ciclo de vida. Um divisor de eternidades. Sei que sentirei falta da diária visitante, a quem batizei de “Oito Horas”. Quando os ponteiros anunciarem o espetáculo da pequena bailarina, estarei tão perto ainda, mas impossibilitada de assistir a ela.

Não ouvirei mais os latidos conhecidos, a voz do jardineiro do vizinho, cujo exemplo de vida, vencendo doenças e inúmeros aniversários, me sorria bom-dia. E Carlos, o carteiro, que tantas alegrias, notícias e pacotes de conhecimento me trouxe... Será que um dia o encontrarei pelos caminhos futuros? Será que, com o passar do tempo, de imensos sorrisos e acenos afeiçoados, apenas nos cumprimentaremos com um levantar de esquecidas sobrancelhas? Outras lagartixas talvez morem na nova casa. Mas são apenas “outras”. Cada vez que eu vir uma delas, lembrar-me-ei de Oito Horas, que fez parte da minha vida.

Ela simbolizou uma era, um período de infância de meus filhos, que, exaurido, só trará cores aos retratos em preto e branco na estante das lembranças vividas. Outros endereços virão em nossas vidas. Será que ainda seremos os mesmos, como cantava Elis, quando nossas histórias forem empacotadas e levadas de caminhão? E quando o passado virar mais uma página em nossas biografias de papal amarelo?

Nenhuma casa, por maior ou mais bonita que seja, tem o poder de colorir nossa história como a casa onde vivemos a infância. Um dia meus filhos se recordarão de passagens nesse lar. Sofia não mais estará aqui nem Oito Horas. Talvez nem eu, nem você. A natureza é assim, precisa fechar um ciclo para iniciar outro. Precisa da morte para começar uma nova vida.

Mas as lembranças da infância, do amor vivido entre quatro paredes, dos filhos que nunca crescem, do melhor amiguinho do filho que sempre chorava de madrugada porque queria os pais, da primeira boneca da filha, do dia em que eles aprenderam a andar de bicicleta, da procura desesperada pelas pegadas do coelho da Páscoa, da esperança na fada que troca um dente por um brinquedo, da gargalhada quando soltavam balões coloridos e os viam voar até as nuvens de algodão... Ah, essas lembranças são eternas.


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O CONDUTOR


Mais uma vez eu chego à Estação da Luz. São seis horas da manhã. O orvalho ainda umedece o ar, e os pássaros esticam as asas preguiçosamente. Entro no trem que conduzirei até a Estação de Santos, no litoral paulista. A viagem demora quase três horas.
Lá, almoço e, à tarde, reconduzo minha máquina de volta à capital paulista. É um privilégio conduzir esse trem dos anos cinquenta, todo restaurado,viajando pelos mesmos trilhos que possibilitaram o desenvolvimento da região.

Quando apito o trem, escuto os passageiros aplaudirem. Nenhum meio de transporte é tão romântico como esse. Entramos na natureza em trilhas sinuosas, como uma cobra se esgueirando pelo mato. Invadimos a privacidade da mata, que se desnuda em flores, plantas, árvores e caídas de água.

Terra que um dia foi virgem, já que índio não macula a castidade da natureza, a Mata Atlântica é surpreendente.  Já vi onça pintada, macaco prego, pássaros de todas as cores – inclusive tucanos – voarem alto com medo do rugir do trem. Hoje, acostumados, eles parecem me aguardar.

Faço essa viagem uma vez por semana, aos domingos. É o melhor dia de trabalho na Ferrovia. As pessoas que viajam transbordam felicidade. Algumas passam o dia na cidade portuária, outras gostam de salgar a alma na praia. Crianças entoam canções alegres com arranjos de gargalhadas. Balões coloridos cambaleiam pelo teto do vagão, como se estivessem tontos de sono, mas sempre voltam misteriosamente para as mãos da criança que os chama.

Vários passageiros repetem a viagem. O filme que passa pelas janelas é demasiadamente rico em detalhes para ser saboreado uma única vez. São tantas espécies de plantas e flores. Nem o arco-íris é tão colorido. Costumo fazer uma pausa bem no meio da Mata Atlântica, quando as pessoas podem absorver um pouco desse lugar raro. O cheiro de mato tem o poder de desarmar qualquer cara enfezada.

Eu conduzo o trem como conduzo minha vida: com muita responsabilidade. O trem é um ninho cheio de filhotes, e eu sou a ave mãe. Tenho que zelar pela segurança dos passageiros. Eu sei que eles se sentem no colo da infância, com esse leve balançar. As memórias acordam, e aquele bem-estar que sentíamos quando a mãe assoprava um machucado, ou dava um beijo de boa-noite, toma conta de nosso ser. Confortante. Morno. Aconchegante. Assim é o trem.

Reconheço os casais enamorados de longe. Sentam-se bem pertinho um do outro, mesmo que haja muitos lugares vagos. Prestam atenção em cada flor, em cada pássaro e em cada palavra que o outro fala. Trocam emoções através de olhares úmidos e leves toques nos lábios. As mãos, unidas, não se soltam nem por um minuto. Já levei muitos casais assim em minhas viagens, das idades mais variadas: adolescentes de jeans rasgados e tatuagens de dragões, casais com filhos pequenos e outros que já viveram mais tempo juntos que eu de vida, e ainda são namorados.

O que eu mais gosto é quando entram crianças! Ah, crianças entendem o mundo sem os óculos da realidade. Elas cumprimentam felizes os seres que não mais enxergamos: gnomos, fadas e sacis. Algumas, mais atrevidas, gritam para eles viajarem junto! As mais corajosas colocam a mãozinha para fora da janela quando eu paro o trem e cumprimentam elfos.

Outro dia, uma menina veio me pedir para conduzir o trem bem devargazinho porque vários hobbits estavam pegando carona sobre o vagão dela. Eles estavam a caminho do porto aonde chegaria um barco com amigos de um reino distante. Eu respondi que faria o possível, afinal, não queria machucar nenhum deles, mas que deveriam ocupar os seguros assentos dentro do trem. Não resisti e completei que eles precisavam pagar pelas passagens também.

Ela saiu resmungando alguma coisa que não entendi muito bem. Para não contrariá-la – nem os hobbits – eu reduzi a velocidade.

Eu aprendi que, quando o trem entra na Mata, ele passa a fazer parte dela, como a linha se torna parte da costura na roupa. E a Mata passa a ser parte do trem. Já vi estrelas tão baixas que pareciam estar na frente da minha janela no vagão-condutor, clareando o caminho em dia de tempestade. Vi corujas de olhos gigantes piscando para mim. Levei um susto quando um macaco risonho me jogou uma banana. Pela carinha dele, não queria me machucar, apenas me presentear. Ouvi papagaios falando “Bom dia, Seu Jorge”, como se houvéssemos sido apresentados. Por isso, eu não duvido que hobbits peguem carona de vez em quando...


Uma vez, vi um piquenique real: D. Pedro II com o pai e a mãe, a arquiduquesa Dona Leopoldina, no topo da Serra do Mar. Os portugueses viviam encantados com a beleza exótica do Brasil. Eu apitei o trem, e eles me olharam assustados. O pequeno Pedro correu acenando com as duas mãos.

Mas o que eu mais gosto é de passar perto da queda-d’água. Alguns passageiros ficam aterrorizados com a altura. Eu não! Adoro ver sereias pulando do alto, descendo em piruetas ornamentais como serpentinas em salão de carnaval; ver botos cor-de-rosa tomando sol na parte rasa, enquanto índios crianças assistem ao balé das garças vermelhas.

Nunca comentei com meus amigos da Ferroviária o porquê de eu querer sempre trabalhar aos domingos. Eles ririam de mim. Guardo esse segredo, mas, quando meus netos me visitam, conto a eles as histórias com todo o colorido dos detalhes. Eles vibram e comentam o que viram quando viajaram no meu trem. Dizem que é somente no Expresso Turístico que isso acontece. Eu respondo que não, que os mundos coexistem em harmonia. Nós só precisamos de um olhar atento para enxergá-los; e de coragem para acreditar.

Bem, é hora de iniciar uma nova viagem. Quem sabe o que me aguarda hoje? Quem sabe se você não é um dos meus passageiros?







(volta)