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ESCRITORES


 


LILLY ARAÚJO

 


É Editora Adjunta da Telucazu Edições.
Formada pela Universidade Estadual de Goiás, é escritora e artista plástica. Integrante da União Literária Anapolina, entidade pela qual colaborou na identidade visual da FLANINHA, programação infantil da FLANA (Feira Literária Anapolina). Seu primeiro livro, “Som do Coração”, foi publicado no ano de 2016, por meio de seleção em edital da Prefeitura de Anápolis. É autora também do livro conceitual “Kafka FDP”. Participou da 1.ª Soberba Exposição realizada no Espaço Cultural da UEG, com suas telas em arte digital. Como designer, desenvolveu dezenas de capas de livros, alguns premiados. Recebeu vários prêmios, incluindo o 55.º Troféu FEMUP em 2019 e o 24.º Prêmio SESI Arte e Criatividade
Goiana radicada atualmente em São Paulo, é também produtora cultural e designer-gráfica da Telucazu Edições com trabalhos de assessoramento ao desenvolvimento de projetos culturais.



Microcontos do livro Kafka FDP


 
O trato era viver só o agora, sem questionamentos do
depois, mas assim que apertamos as mãos eu esqueci
o que era trato, e assim que apertamos os nossos
corpos, esqueci o que era depois. (QUEBRA CONTRATUAL)

Amar sem cadeias é querer pousar as asas,
mesmo sabendo voar.
(GAIOLA)

Quero de ti o beijo
com gosto
de nuvens afastadas. (IDÍLIO)

A máquina da lógica funcionava a pleno vapor,
foi só cair uma fagulha do seu amor
que tudo pifou. (FALHA TÉCNICA)



*Um dos vencedores do VII CONCURSO DE MICROCONTOS DE ARAÇATUBA SP, 2021. Tema “Intolerância religiosa é crime. Respeite as diferenças.”

Jacira, ajoelhada diante de homem branco, foi proibida de fazer preces ao sol, ao rio, às árvores.  Não conhecia aquele deus, mas ao vê-lo exigir tanto sangue de seu povo, perdeu toda a sua fé. (DESCATEQUIZAÇÃO)

O RENASCIDO

A carne de Rosa era dura!
Eu sentia quando brincava de mordê-la.
Era uma carne meio diferente,
e alguns diziam que nem era de gente.

Rosa, até no jeito de andar se destacava,
tinha umas ancas largas
e uma bunda obtusa que balançava.

Ah, Rosa! Eu me recordo muito claro
das vezes em perdia uma pétala no caminho,
entre a sua casa e o trabalho.

Mas a carne de Rosa era dura!

Ela tinha um olhar duro também.
Umas mãos duras, e dedos duros.
Um olhar perdido
como quem sonha com algo muito distante.
Mas o olhar de Rosa era macio
quando me esfregava com sabão,
e a fala dela ficava entre dura e zombeteira,
quando me mandava esfregar atrás da orelha.
— Seu encardido! — dizia me dando um gostoso sermão.

Seus dentes eram tão brancos,
mais brancos que o próprio branco,
quando ela sorria enquanto me enxaguava.
E das poucas vezes em que isso acontecia,
de vê-la sorrir assim,
podia mesmo jurar que ela nem era gente,
igual ao que muita gente falava.

Foi na ladeira entre a rua quarta
e a terceira,
que eu vi Rosa como ela era,
pela primeira vez,
em sua forma verdadeira.
(Rosa não era mesmo gente!).

Um barulho estrondou, e
ninguém sabia ao certo de onde vinha.
Agora tinha era pavor nos olhos de Rosa,
e eu, que era muito jovem para entender,
só ouvia sua prece citar nomes desconhecidos.
Obá, Ogum e Oxossi — gritava.
— Salve-nos, oh, deus da guerra!

Enquanto o medo ia virando terror,
acho que a ouvi clamar por um tal de Xangô.
Nunca vim a saber depois,
porque gente branca
tem medo dos ‘deuses dos pretos’.
E eu jamais pude entendê-los.

Mas a carne de Rosa era dura!
Dura dura dura,
que nem um couro de javali
que o meu pai costumava citar em suas caçadas.

E sua mão, que era preta,
preta preta que nem breu,
puxou minha carninha branca
para dentro do seu abraço
e tremendo toda se encolheu.

A carne dura de Rosa parou todas as balas,
e de dentro dela nascia, pela segunda vez,
eu!


Lilly Araújo






 
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