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ESCRITORES


Henriette Effenberger


Lagoa das Garças


Lá em Lagoa das Garças,
onde eu queria ter nascido,
a vida divide, à toa,
três fases de sua lida:

alvorecer encantado,
verde mesclando o dourado.
E, enquanto recolhem-se os grilos,
acordam, ao mesmo tempo,
o peixe e o pescador,
o bote, o remo, a rede,
a água e o barco a motor...

Quando o sol do meio-dia,
no auge do seu vigor,
concentra toda energia,
regurgitando calor,
a natureza faz a sesta,
dormita, em doce torpor...

À tardinha,
o sol, cansado,
boceja, entediado,
róseas luzes no horizonte,
como se fossem trombetas,
chamando para seus ninhos,
alvoroçados passarinhos....

É quando brilha a Estrela D´Alva
e faíscam vaga-lumes,
piscam, ao longe, lampiões,
saltam e coaxam as rãs,
misturando-se aos grilos,
até o próximo amanhã.

Ah! Se eu tivesse nascido,
lá em Lagoa das Garças,
onde a vida vive à toa
e eu, em estado de graça!


O Homem do Carro-Forte


5h45 de um dia absolutamente normal.
O homem pára o fusca em frente ao prédio da empresa, que não tem estacionamento para empregados, sai do carro e o tranca. Cumprimenta o colega da portaria, dirige-se ao relógio de ponto e passa o cartão eletrônico: 5h48 - tem ainda mais doze minutos para vestir o uniforme, engolir um café da garrafa térmica e aguardar o chefe com a rota do dia.
Depois disso, senta-se ao volante do carro- forte, olhos atentos no trânsito, no retrovisor do lado direito e do lado esquerdo.
Cada ultrapassagem é um perigo afastado, cada parada um novo risco. Na cinta um revólver 38 e o celular desligado – medidas de segurança da empresa. Não há música, não há conversas com os colegas. Almoça rapidamente a "quentinha" trazida pelo companheiro.
A empresa alugou integralmente seu tempo, suas emoções, seus ouvidos.
19h50: o Carro-Forte aproxima-se do portão de entrada. O motorista cumprimenta o colega da portaria, estaciona o veículo, vai ao banheiro, lava as mãos, troca o uniforme pela bermuda e camiseta, liga o celular à procura de um recado de casa, da família, do seu amor...
Dirige-se ao relógio de ponto e passa o cartão: 20h05.
Localiza a chave do fusca na pochete e caminha em direção ao automóvel, que não mais está estacionado esperando-o .
Dá mais alguns passos. Olha para os lados. Novamente olha para o meio- fio onde estacionara o fusca. Nada. Resta no chão apenas algumas manchas do óleo, escorridas do motor cansado.
Os pensamentos vêm em turbilhão...está cansado, com fome e fora roubado.
Novamente olha para os lados tentando encontrar um conhecido qualquer, o ladrão, sua auto-estima. Não vê ninguém. Está sozinho!
Como seu celular está sem créditos, caminha até o orelhão e pára antes de discar, a família está longe, não tem ninguém a quem chamar, a quem recorrer.
Reunindo o que lhe sobrou de dignidade, toma um ônibus urbano e procura a Delegacia de Polícia mais próxima.
21h14: O escrivão toma seu depoimento para elaborar o Boletim de Ocorrência. Providência indispensável para que o nome do trabalhador não seja comprometido por possíveis atos do bandido, na posse de seu automóvel. O funcionário da Delegacia, displicentemente, diz a ele que esses furtos são rotineiros, em média, ocorre um a cada quinze minutos.
Como se fosse a coisa mais natural do mundo dirigir um veículo pesado, colocando sua vida em risco para defender o patrimônio de terceiros durante 14 horas seguidas, sem intervalo, sem alimentação adequada, sem descanso, e no final do dia constatar que seria apenas mais um número na estatística de criminalidade e violência.
Resta-lhe a perda. Resta-lhe o sentimento de profundo desamparo, resta-lhe a revolta, resta-lhe, talvez a indignação.
Indignação por trabalhar mais do que seria o normal, enquanto os governantes, eleitos com seu voto, pagos com o dinheiro de seu imposto, reúnem-se em gabinetes com ar condicionado, para articular conchavos e estratégias para vencerem as próximas eleições.
Indignação ao perceber que o seu dinheiro suado é utilizado para a compra de legisladores, os quais aprovarão leis que beneficiam a elite, os detentores do poder econômico.
Humilhação ao perceber que seu tempo e seu suor é convertido em publicidade demagógica e que é o seu trabalho pesado e mal remunerado que fornece o álibi para a corrupção e o tema para as campanhas publicitárias anti-violência.
23h50: Chega em casa, desabafa com as pessoas a quem ama, toma um banho de chuveiro e tenta dormir. Amanhã será outro dia. O despertador novamente tocará as 4h00 e ele acordará para mais um dia de trabalho.
Mas amanhã não estacionará seu fusca defronte à empresa. Enfrentará a fila do ônibus e o chacoalhar do coletivo enquanto os responsáveis por sua situação estarão dormindo calmamente e ao acordarem terão à sua espera seus motoristas em seus automóveis, convenientemente blindados, dotados de bancos finamente revestidos por couro legítimo e a salvo da violência que geram.



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