Obsessão
Depois que
romperam, todos os dias o telefone tocou exatamente à meia-noite.Ela
sabia quem era. Conhecia a respiração ofegante. Ficava a escutá-lo por
infindáveis minutos, somente para a consciência permitir-lhe dormir em
seguida. O motivo ela nem sabia mais qual fora. Ciúme doentio,
agressões verbais, humilhações públicas. Talvez, a culpa fosse do
destino, como lhe dizia a cartomante. Morar no interior seria a última
tentativa. Precisava se livrar da obsessão dele. Não desse certo, já
havia se decidido a resolver a situação, ingerindo pastilhas de veneno
para ratos. Foi de madrugada para não ser vista. Quando entrou na
estrada, viu pelo retrovisor que um carro se aproximava, ao mesmo tempo
em que o celular tocava insistentemente, mostrando o nome dele no
visor. Descontrolada, entrou num posto de gasolina a procura de ajuda.
Saiu do carro aos gritos e foi acudida pelos frentistas que não
conseguiam entender o que ela balbuciava. Esclareceram que nunca haviam
visto o carro que a perseguia, quando a polícia chegou. No celular, não
havia registros de chamadas há treze dias. E treze foi o número de
pílulas que ela ingeriu sem que ninguém percebesse enquanto abriam o
porta-malas, para nele encontrar um corpo esfaqueado em estado de
decomposição.
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AVE MARIA
O meu sonho
sempre foi ser freira. Chamar-me Maria. Mas nasci com asas, sem ser
anjo. Posso me aproximar de Deus de outra forma. Consigo subir até Sua
casa.
Antes de a
noite acordar pela manhã, as irmãs libertam a respiração do convento
pelas janelas: “Tum-tum”, “Tum-tum”, escuto o coração do convento
pulsando em reza. Ah, se não fosse ave, seria freira! Como é encantador
ouvir os passos delas flutuando pelo piso frio do convento, como se
voassem, sem abrir as asas. Logo começam as xícaras a tocar piano e eu
sinto o aroma de café.
O convento é
um grande ninho onde moram anjos em forma humana. Gosto de sobrevoar os
telhados e sentir o calor que irradia pelas suas janelas. O próprio sol
visita as suas dependências e depois se esparrama pelos seus pátios e
frestas. Fico tão emocionada, que arrulho de encantamento.
Às vezes,
sinto saudade do cheiro verde das matas e voo até lá. Como é extasiante
sentir odores tão diferentes! A maresia, que salga as narinas. O café
quente do convento. Os perfumes de banho dos humanos que andam de um
lado para outro, como formigas trabalhadeiras. Sou mesmo uma ave
privilegiada, testemunho a história desse povo todos os dias. De um
lado, as doces beatas; do outro, o salgado mar de botas molhadas. O
vento traz folhas da mata, que acariciam os rostos dos homens. O
chafariz respinga lágrimas de felicidade desse solo abençoado.
Outro dia,
muitas nuvens se aproximaram do convento. Extasiada, deitei-me sobre o
telhado e permiti que as águas doces me banhassem de todas as minhas
decepções. Eu aceitei quem eu era. Como havia pessoas humanas e
animais, havia eu, ave. Tantos similares e tantos diferentes,
convivendo com árvores e mares, chuvas e risadas. Únicos e realizados.
Filhos da natureza. Pais de nossos sonhos.
Eu sempre
quis ser freira. Mas nasci ave. Acho que a vida foi muito generosa
comigo. Não sou uma pomba qualquer. Sou uma ave brasileira, alegre como
uma cigana, viajando entre o mar, a mata e a cidade, em um tapete
mágico movido a vento. Sou uma ave maravilhada. Sou uma ave dessa terra
santa.