ÍNDICE
O RELÓGIO
Fabio Siqueira
do Amaral
Fato não inédito... mas, verdadeiro
como os outros que o antecederam...
Fora meu presente de aniversário, isso lá pelos idos de 1986.
Jamais parou, nunca atrasou nem um minuto sequer. Rigoroso no horário. Implacável
no momento de estrilar sua campainha pela manhã, fazia-me saltar da cama com os
olhos ainda semicerrados e a boca toda babada...
Segundo as informações do
Vicentinho, naquela tarde – logo após o festivo almoço de comemoração –, o
relógio funcionava sem corda e sem pilha... Bastaria agitá-lo por uns momentos,
de um lado para o outro, para pô-lo em movimento. Caso acontecesse esquecer-me dessa norma,
e ele cessasse de “trabalhar” – sem problemas! –, que sacudisse mais um pouco o
artefato e pronto... Silencioso... Não se ouvia nenhum tic-tac... Se apertasse
aquele botãozinho preto, a luzinha azul acenderia e era possível ver o horário
no escuro do quarto.
Casei-me, mudei de emprego, deixei
minha pacata cidade, meus pais, meus amigos, fui para a Capital e o relógio foi
junto, trazendo as lembranças do meu grande amigo.
Por telefone, mantinha contato com o
Vicentinho.
Abandonou-me a mulher, quando, pela
recessão, fui demitido, e alguns meses depois consegui novo ofício numa pequena
firma, ganhando menos da metade do antigo ordenado. Ela levou tudo o que
pôde... Só deixou meu relógio.
Vi-me obrigado a sair do ótimo
apartamento, meu ninho de felicidade por alguns tempos. Aluguei a minúscula
kitchenette com telefone, porém, miseravelmente mobiliada, num prédio decrépito,
sujo e maltratado, numa das ruas mais do que vagabunda e mal falada da bela São
Paulo.
Meus velhos, por várias cartas,
chamaram-me de volta... Vicentinho, eterno amigo prestativo, muito querido,
sincero e devotado, exigiu que voltasse... Ele conseguiria melhor ocupação para
mim, na empresa dos pais dele. Agradeci
muito, mas não retornaria. Não queria depender nem dever obrigação a ninguém.
O tempo foi passando. As ligações
telefônicas foram rareando de minha parte por contenção de despesas. Vicentinho
também deixou de ligar, acreditando, talvez, no meu desinteresse pela nossa antiga
amizade.
Hoje, domingo, acordei antes do
toque de despertar com muita saudade desse meu amigo. Uma nostalgia pesava-me,
por assim dizer, quase sufocante. Poderia dormir mais, não era dia de trabalho
mesmo. Vi pelas frestas da basculante que já raiara o sol. Peguei o relógio. O
horário marcava três horas e treze minutos. Fui até a janela e a abri. A
claridade ia alta... Eu dormira demais e o relógio estava parado. O relógio de
pulso indicava ser quinze para o meio dia... Sacudi o relógio, presente de meu
aniversário. Ele não funcionou... Sacudi com força e demoradamente... Nada...
Achei que àquela hora de almoço era
apropriada para fazer surpresa ao Vicentinho.
Liguei para ele.
A demora ao atendimento causou-me
alguma frustração. Finalmente a voz estranha deu o ar da graça:
— Alô...
— Alô... Quem fala? – perguntei.
— É a Nancy...
A Nancy, prima do Vicentinho.
— Oi, Nancy... Como vai...? Gostaria
de falar com o Vicentinho...
— Infelizmente não será possível...
Ele morreu nessa madrugada...
— Como?! Morreu?!
— Sim... Na última sexta-feira,
Vicentinho sofreu um acidente de carro... Estava internado em estado gravíssimo.
Hoje, às três e treze da madrugada, ele deixou de respirar.
Não respondi nada mais, ou, se
respondi não me lembro... Desliguei o telefone e chorei como nunca havia
chorado por um amigo.
O relógio – recordação do Vicentinho
–, cristalizado naquele fatídico horário – 3h13min – nunca mais voltou a
funcionar.
(volta)
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