A Divina Comédia

 “ ...a humana fala a natureza expressa;
Por ela o modo de falar deixado
ao homem está, segundo lhe interessa.”
(Dante Alighieri - A Divina Comédia)

 Coloquei, a tocar, um disco de Ellis
(morta, famosa e infeliz!)
Estava rodeada por mortos:
Lia Dante, ouvia Ellis,
Posso até  ouvir os anjos
falarem com Beatriz...
Ao mesmo tempo, clara,
entoa a voz de Ellis.
Além do que
Chovia...
Talvez, fosse eu a única
a perceber a ironia:
há mais morte entre os vivos
que vida a ser cumprida.
Memórias...
Lâmpadas...
Fuligem...
Cinza pintando o breu
e mais escura que a noite
estou eu
arrebanhando meus mortos
guardando suas memórias,
acendendo suas luzes,
limpando suas fuligens.
Enquanto isso, a vida corre...
 Lá fora
paixões e desencontros,
trabalho  e ócio.,
indiferença e morte,
(Olhe lá, ela rondando de novo!)
Palavras não escritas,
frases esquecidas,
beijos não dados,
amor resguardado.
O nó
da vida
se desfaz
sem
dó...

Fotografia

  
O mar fotografa o sol
no dourado da manhã,
no rosa da tarde,
no azul forte da noite,
revelando as cores
com a nitidez perfeita
com que a natureza as criou.
 
O mar fotografa o sol
mesmo quando ele não existe.
No cinza escuro das chuvas,
o mar fotografa
a ausência do sol.

Mágica


 Calada a noite.
Morna...
Final de verão,
um vaga-lume risca,
distrai a escuridão.
 
Enxames de siriris,
caça-moscas,
rodiasol.
 
Na calada da noite,
fadas e anjos
alternam-se
com sacis e assombrações.
 
Às vezes, galos distantes,
às vezes, guardas noturnos,
interrompem
na calada da noite
a mágica
do pensamento errante.

Cafetinagem

 
a arte
mais arde

que morde...
e
se prostitui
com a fama
que a transforma
em grana.
na cafetinagem
das galerias
das gravadoras
das livrarias
e editoras
nem mais arde
nem mais morde
submissa
entrega-se
às leis do mercado...

Lamentos Sem Dor

 
No espaço que compreendia
entre o dia e a madrugada,
o bicho rondava à solta
pela escuridão.
No nada...
Urrando,
esgueirando-se,
entre as assombrações,
colecionava visões,
como as de Dante
 (no inferno...).
E o bicho engolia o homem,
presente, passado...
(eterno...)
Enquanto se consumia.
(Fogo-fátuo!)
esmaecia
com as  luzes da alvorada...
Quando acordava
não era
nem bicho,
nem homem,
nem nada...

Vingança...

Um mendigo, aproveitando-se da pausa para o café
do motorista que estacionara o ônibus no ponto final, entrou
no coletivo, deu a partida e saiu em alta velocidade
até chocar-se contra a parede de um prédio. Perguntado
sobre os motivos de sua atitude, disse que pretendia esmagar
as pessoas e que estava seguindo as ordens do Cão. Por
tratar-se de um doente mental, as autoridades policiais o
encaminharam para a Assistência Social.
(Folha de S.Paulo - março/99)

Era mais que pobre... mais que só
Era um infeliz jogado ao léu,
doente e maltrapilho como Jó,
nem tinha voz para elevar ao céu...
 
Mendigo... vagabundo... louco...
Era tratado como um cão vadio,
Não tinha lar, amigos tampouco...
Viu estacionado o ônibus, e sorriu...
 
Num relâmpago, a idéia em sua mente
transformou-se em ação. Deu a partida
e arremeteu com ele contra aquela gente
 
que o  perseguira, que o humilhara
que fizera com que ele odiasse a vida.
Seguiria com o Cão, mas se vingara...
 

Vira-latas

 
Como um retrato da crise
coabitam a mesma marquise
um mendigo bêbado 
e um cachorro vira-latas...
Ainda no mesmo espaço,
disputam os míseros restos
ratazanas e baratas...
 
Apercebe-se o mendigo,
como um ser da raça humana,
quando, ao acender
seu cigarro,
lampeja,
(qual rápida chama!)
uma luz em seu olhar.
 
A fumaça
acorda o cão,
que começa a se coçar...
Acordados
homem e cão talvez sonhem,
talvez não...
Quem sabe uma cama quente?
Mais um trago da cachaça?
 
Talvez gozem a ilusória liberdade
do abandono.
Pois, à revelia do cão,
o bêbado se tornou seu dono.
Assim como,
a bebida é do homem a prisão...
 
Debaixo da mesma marquise,
insetos, homem e cão
se abrigam
da mesma crise.
Compartilham o mesmo pão...

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