JANELA VAZIA

          Todos os dias ao fazer seu trajeto casa-trabalho, ele passava pelas imediações da rua "C", e todos os dias ela lá estava...
          Avistava-a com interesse, pois tinha um olhar atraente, um sorriso tímido, cabelos dourados e muito enigmática, o suficiente para atrair um rapaz de bom gosto, como ele.
          Nas primeiras vezes, ele apenas limitou-se a esquadrinhar o seu perfil.
          Algumas outras depois, resolvera arriscar um bom dia, ao que obteve resposta.
          Entusiasmou-se e já no dia seguinte, o cumprimento se tornou mais íntimo.
          - Oi! arriscou ele.
          - Oi! respondeu ela com um sorriso menos tímido.
          Alguns ois diários e já estava ele audaciosamente fazendo parada em sua janela.
          - Você por acaso pensa como eu, que é um hábito deveras saudável contemplar as manhãs, de preferência respirando o ar puro das janelas?
          - Claro que sim...
          - É! Parece que os bons fluidos são absorvidos mais ligeiramente, e armazenados para o dia todo...
          - Penso que sim...
          - Trabalhas?
          - Não.
          - Estudas? .
          - Em casa mesmo.
          - Huummml (o pensamento ligeiro supôs logo tratar-se de uma moçoila de estirpe, quem sabe descendente longe da nobreza, um tanto fiel à tradição dos castelos).
          Reparou na casa, com seu aspecto de casarão antigo, com porão e sótão. É!... estava explicado. A garota era por certo remanescente do sangue azul, aprendendo línguas e boas maneiras como qualquer realeza.
          Sentiu crescer-lhe o interesse e a curiosidade, mas resolveu portar-se igualmente como nobre, não se estendendo em perguntas frívolas.
          Decidiu resguardar-se no mistério e, ajeitando o colarinho da camisa esporte, despediu-se com um educado "Até logo"!
          Quando se apresentou ao chefe da seção em que trabalhava, trazia ainda as cores vivas do contentamento estampado no rosto, ao que o outro lhe perguntou:
          - Que ares são esse? Viste um passarinho verde?
          - Não, uma passarinha azul celeste!
          Ambos riram de si mesmos e ele partiu pras tarefas, pois com uma dose maior de ânimo, elas se tornam mais fáceis de serem realizadas.
          À saída do expediente passou por uma floricultura e escolheu um lindo botão de rosa vermelho-escuro, da cor da paixão que já lançava chamas em seu peito.
          Guardou-a com todo cuidado até o dia seguinte em que, ofertando-a à sua princesa, recebeu em troca um "Muito obrigado, não vejo há bom tempo gentileza igual a esta!... "
          Inventou de dar uma de encabulado e respondeu cortesmente: "Sou eu que devo agradecer por ter aceito esta rosa.
          Escolhi um tom escuro para dar mais brilho à alvura do seu rosto!"
          Ela enrubesceu repentinamente, o que ele interpretou como sinal inicial de rendição. E confiante como sempre no seu sucesso com as mulheres, pediu licença para beijar-lhe a mão (como os detentores da nobreza usam fazer!) e despediu-se com um leve sorriso.
          Outros dias se sucederam iguais a esse. Apenas a cor da rosa era diferente a cada dia.
          Quando completou exatamente um mês desde o primeiro cumprimento, ele resolveu acrescer algumas rosas, formando um buquê muito exótico no arranjo, pediu à moça da floricultura que borrifasse uma fragrância suave e anexou um cartão discreto, onde estava escrito: "Gentil princesa, gostaria que jantássemos juntos esta noite?" E assinou: "Um nobre apaixonado."
          Manhã seguinte, no mesmo horário de sempre, resolveu ousar a corte e caprichou na escolha da roupa: camisa de grife inglesa, que comprara de véspera, numa loja de requinte, mudou o penteado, decidiu exibir-se bem mais do que já se mostrara.
          Ao chegar diante do "palacete", espantou-se com um pequeno aglomerado de homens enternados e mulheres entailleuradas nas imediações da janela, da qual sua princesa se mostrava ausente. seriam serviçais do "castelo"?
          Ou seriam curiosos querendo apreciar qualquer evento?
          Resolveu perguntar a uma senhora gorda, discreta, com um cachecol enrolado nos cabelos e pescoço:
          - A senhorita que mora nesta casa está de viagem ? sou amigo da família e gostaria de me despedir, soube que estariam de partida para o exterior... (arriscou vivamente).
          - A senhorita Elizabeth partiu para sempre.
          - Como assim? Não volta mais para o Brasil? Devo então pegar o endereço e enviar-lhe minhas despedidas?
          Tenho certeza de que ela perdoará minha falta por não ter chegado momentos antes...
          - Meu senhor, tarde demais...
          - E um telefonema? Posso me apresentar e quebrar o protocolo, o que vai deixar a senhorita Elizabeth muito prazerosa.
          - Infelizmente é impossível...
          - Impossível por quê? A senhora não sabe quem sou, nem tampouco onde moro...
          - Certamente que não. Mas sei que no cemitério não se recebe cartão postal e muito menos telefone, de quem quer que seja.
          - Cemitério?! ele engasgou-se todo, sentiu o tremor que se iniciou nas pernas e foi subindo até à cabeça, e sem saber como, a voz liberou um som discreto, apagado:
          - A senhora que dizer que houve um acidente?
          - Não senhor. Foi a AIDS mesmo. Desde que a contraiu na cirurgia dos membros inferiores, após o desastroso acidente de moto, optou por não fazer tratamento nenhum.
          Paraplégica e ainda por cima aidética, não sei como tinha ânimo para ficar nesta janela todos os dias. Parece que cada manhã era seu último sopro de vida. Até a cor foi-lhe sumindo aos poucos...
          Sem esperar ouvir mais nada ele se retirou, pedindo que a mulher colocasse no caixão o buquê de rosas multicores.
          E ficou imaginando seu rosto pálido, avermelhando-se diante do convite inesperado...