AS LEIS NOSSAS DE CADA DIA

(USF/93)

          "... Quando chega fevereiro, ela vem me procurar pra pedir dinheiro..."
          Saí cantarolando satisfeita em plena manhã de sexta-feira, véspera de Sábado, visitar lojas, supermercados, açougues, sei mais o quê, pensando é claro, em prover meu fim-de-semana.
          Na bolsa o talão de cheques, no coração o prazer, afinal depois de trabalhar sete dias, o seguinte é descansar, como fez Deus...
          Parada número um: Quitanda do seu Aristeu, tudo o que eu pegar é meu.
          - Belo dia hein freguês?
          - Belo.
          "Oxa gaúcho sabido, hoje resolveu botar na calçada as bancas mais coloridas, que é prá "guçar"inda mais o apetite prazenteiro do mulherio. Sabe como lidar com essas coisas, o "Seu" Aristeu: Vermelhas as frutas, verdes as folhas e a simpatia? Ah, essa é mesmo de graça, que é pra atrair. E os preços? Não se pode pensar em baixar, que é pra não arrastar consigo a qualidade, é o que diz a todo o freguês, o gaúcho.
          Começo pegando ali mesmo, na disputa das mãos, de tudo um pouco, sem perder mais tempo que é pra ganhar a vida.
          A balança vai baixando pro meu lado, subindo pro dele, é claro, do esperto Aristeu, pois tudo que eu pagar é seu.
          Segunda parada: Sacola abarrotada, o negócio é concluir com as carnes, sem me esquecer da correria na segunda. Tirar no "fundo", o que é pra não afundar no descrédito. Esse pessoal de banco sabe mesmo arrastar um cliente, pensava eu escondidinha no balcão de frigorífico do super, hiper, supermercado.
          Minha atenção é atraída para uma senhora, da mesma idade que a minha, é o que me parece, que atenta, sem notar os olhares, reconta algumas notas enroladas no lenço:
          - Quero aquele pedaço ali, ó moço, aquele com osso.
          Fiquei surpresa com sua maneira de enxergar as coisas: na verdade era inversamente, um osso, revestido com alguns poucos nacos de carne.
          "Só da mesmo pra uma sopa" - pensei baixinho.
          E foi aí que o meu fim- de-semana começou a se acabar. Me fez pensar.
          Pensamentos não de poesia ou de festa. Resolvi retomar.
          No caminho de volta, o mesmo de todos os dias, quando vou lecionar, revi novamente aqueles semblantes pedintes, despenteados e nada poéticos, os mesmos que encaro em sala de aula.
          Atravesso o viaduto e tomo a marginal que circunda uma das escolas em que leciono, algumas noites da semana: relembro dos bancos vazios de jovens cansados, com fome de alimentos que a escola fornece, sem fome de saber.
          O carro rodando, minha cabeça no mesmo ritmo. Estou agora diante da penitenciária da cidade interiorana, pequena na estrutura, mas superlotada de homens, mulheres e até adolescentes, amontoados, vigiados, privados de tudo, a começar pela própria liberdade.
          "Sábado com cara de semana..."
          Nas ruas crianças de todas as idades, misturam-se à sujeira dos esgotos, brincando, brigando, gritando de doer os meus ouvidos.
          No ponto final da feira, que é onde me encontro agora, outra vez aquele amontoado de gente remexendo os restos de feirantes acomodados, que deixam esparramados tantas folhas amarelas, frutas recobertas de moscas, contaminação a granel...
          Acelero um pouco mais, me deu pressa de chegar. Chegar sim, mas aonde ? Passo rápido pela igreja, é lá que no domingo justapomos nossas mãos, a Deus pedindo solução.
          "... Quando chega fevereiro..." A lembrança vem rápida, do carnaval que já está chegando, costuma levar consigo as mágoas, quem sabe não arraste essas minhas ?
          Descarrego rápida as sacolas, que é para me livrar do "peso". Abro a geladeira, janelas, ligo a TV, tudo ao mesmo tempo que é pra preencher todos os espaços vazios.
          Ligo-me no noticiário de última hora:
          ... Milhares de desempregados tomaram conta do edifício da zona nobre da cidade, em fase final de acabamento. A polícia ordenou que fossem despejados, sob pena de usar a violência para fazer cumprir a lei.
          - A lei! Sem lares, ou moradias. A quem atendem essas leis?