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ESCRITORES


André Kondo


A casa que habito
André Telucazu Kondo

A casa que habito
não tem lembranças nos ladrilhos
não tem porta presente
porão de passado
janela pro futuro

Na casa que habito
as notícias não passam da soleira
com o irônico capacho de bem-vindo
– todos pisam na hospitalidade
e beijam a porta na cara –
as ‘novidades’ amarelam do lado de fora
e são abandonadas em alheias varandas
que o mundo insiste em enganar
com tragédias velhas
repetidas à exaustão

Na casa que habito
ouço o sussurro das tábuas
o gemer dos pregos
nada é concreto
tudo é devaneio
acredito em papais noéis
só não tenho chaminés

Na sala há uma cadeira de balanço
que só vai e nunca volta
No quarto, uma cama de casal solteira
com uma mancha de arrependimento no lençol
Na cozinha, o relógio está sempre faminto
com os ponteiros devorando as madrugadas
e regurgitando escuridões nas horas de luz

A torneira da pia do banheiro
goteja solidões
a banheira é colo
o corpo nu fetal
o eco dos azulejos embaçados
e o choro primordial
de um parto sem útero

A casa que habito
não está em rua alguma
encontra-se em um eu desconhecido
na alameda dos ausentes,
sem número.




Se eu morrer
André Telucazu Kondo



Se eu morrer
Não tenha dó de mim...

Posso não ter deixado muitas pegadas
Mas meus passos foram firmes
Posso não ter tido muitos amores
Mas amei a todos como um

Se eu morrer
Não permita que o relógio pare em mim
Mas que os ponteiros sempre apontem
Para a felicidade que vivi

Quando eu partir
Não diga adeus pra mim
Deseje-me sim
Uma boa viagem como fim

Sequer pranteio pelos erros
Que cometi pelo caminho
Pois foram eles que fizeram
Nossas vidas paralelas
Se encontrarem por aí

E se hoje morri
Foi apenas mais um erro
Do qual não tenho medo

Pois eu digo e repito:
Vivi
Muito mais do que morri.



Pequenas poesias*
André Telucazu Kondo

uma folha
brinca sozinha
dando cambalhotas
de outono
                                            um caramujo
                                            deixa um rastro de atrasos
                                            sem se preocupar
                                            com a pressa do mundo
atrás
do arame farpado
uma farpada rosa sonha
tornar-se afago
                                            uma semente de dente-de-leão
                                            plana
                                            paraquedista da vida
                                            sem planos
um riacho de silêncios
murmura respostas
para perguntas
não feitas
                                            o reflexo
                                            da lua
                                            em uma poça d’água
                                            sonho de marés
uma gaiola
vazia
guarda
voos



* Poemas do livro “Cem pequenas poesias do dia a dia”.
    Chá
André Kondo

    Harue olhou para o rio. No Japão, a terra tremia. No Brasil, a terra não se movia. Terra segura, diziam. Harue olhava para o rio. Os rios existem para lembrar aos homens que a aparente imobilidade das coisas não passa de ilusão. O rio se movia, cada vez mais rápido. Às vezes, Harue observava o rio e sentia vontade de seguir o seu curso. Descer de volta ao mar, o mar que a havia trazido de tão longe. Do mar, voltaria ao Japão, onde a terra tremia. E o seu coração também.
    O rio Itanhaém... Quando o sol iluminava as suas águas, no mesmo instante, o reflexo da lua brilhava sobre o rio Uji, no Japão. Como poderia ser isso? Noite e dia. Assim como o rio Preto e o rio Branco, que correm na mesma direção e se encontram, formando o rio que corria abaixo da janela de Harue; as águas do dia e da noite se encontram, para correrem juntas até o mar do tempo. O mar que banhava a Praia da Saudade.
    Harue sonhava em voltar ao Japão. Lá, ela ajudava os pais em uma casa de chá, ao leste da ponte sobre o rio Uji. Mas não era tanto da casa de chá que ela sentia saudades. Pensava em Taro, que trabalhava na lavoura de chá. Uma vez por mês, Taro levava o chá, que cultivava, para a loja de Harue. Apesar de terem se visto tantas vezes, nunca haviam trocado sequer uma palavra. Nunca dividiram um momento, nem para um chá. Tão próximos... A distância de duas tigelas de chá.
    Harue costumava observar o rio Uji, sabendo que, rio acima, o seu amado Taro cultivava o chá que servia. Sentia que aquelas águas traziam Taro para mais perto dela. E foi em uma tarde em que observava o rio Uji, que a terra tremeu. Não houve tempo para nada além de saltar pela janela. A casa de chá desabou. Sua mãe permaneceu ali, bebendo o chá da eternidade.
    Seu pai se salvou. Poderia reconstruir a casa de chá, mas o que é uma casa de chá, sem a companhia da pessoa amada? O pai de Harue sabia que o chá era feito para encontros. Para que as pessoas se encontrassem para compartilhar a vida simples, servida em tigelas de chá. Portanto, como poderia ficar, sabendo que nunca mais reencontraria a esposa para o chá? Decidiu partir. Aceitou a oferta do governo japonês, que incentivava a emigração para um país em que o café era mais apreciado do que o chá. Partiu para o Brasil, com Harue. Não houve tempo para um adeus.
    Harue observava as águas do rio Itanhaém, que normalmente tinham a cor do chá. Elas estavam agitadas naquele dia, escurecidas. Harue sabia, a terra não se movia, mas as águas...
    Uma grande enchente carregou sua casa, assim como as casas de toda a colônia japonesa, que ali havia se estabelecido. Mais uma vez, Harue viu o seu lar ser levado, em apenas um único movimento do mundo. Nas águas da cor do chá, o pai reencontrou a mãe...
    Sozinha, Harue seguiu os passos dos colonos, que se dirigiram para o Vale do Ribeira. Despediu-se das águas... Ao chegar na região, suas lágrimas corriam como um grande rio. Seu chão tremia. Por que a vida era assim?  Por que tantos desencontros?
    Fechou as pálpebras. Uma lágrima caiu... em uma xícara de chá. Abriu os olhos. Taro segurava duas xícaras.
    Taro, após a partida de Harue, ao saber que ela havia emigrado ao Brasil, seguiu o mesmo caminho. Não sabia que o Brasil era tão grande. Sabia apenas que grande era o seu sentimento por ela e que nada no mundo poderia ser maior do que isso. Encontraria Harue. Na região do Vale do Ribeira, fazia o mesmo que fazia no Japão.
    Taro plantava chá, apenas para isso: para que duas pessoas pudessem tomar chá, juntas, no momento do reencontro.    

(volta)