Tive sorte!
Colecionei amigos durante a minha vida inteira. Daqueles
que participaram da infância, ainda guardo as mais doces lembranças...
Meus queridos irmãos fizeram parte desse grupo de brinquedos e
peraltices.
Cultivei amigos na adolescência, quando o coração se torna inquieto,
palpitando mais forte e precisando de parceria para extravasar problemas
interiores, e também durante a faculdade. Grandes amigos, que me
deixaram
marcas profundas de saudade.
Anos
mais tarde, conheci Marcos, meu marido, inesquecível amigo e confidente,
dono dos meus segredos, chama acesa da minha saudade. Nossa cumplicidade
era tão forte, que parecia resistir a todos os vendavais, às piores
tempestades. Infelizmente, muito cedo me deixou, em busca da paz
infinita...
De
todos os amigos, porém, houve um, que eu diria, foi o meu esteio, desde
a mais tenra idade, reconhecido como o mais puro, o mais nobre e mais
verdadeiro pelo meu coração.
Era
forte, corajoso e arrojado, capaz de vencer com dignidade as
dificuldades
da vida. Sabia dividir o tempo com a família, o lazer e o trabalho.
Tinha um coração enorme e cheio de sabedoria!
Religioso
e de princípios morais acentuados levava muito a sério o que fazia.
Mergulhava fundo em seus empreendimentos, não tinha medo de recomeçar.
Tinha
a força de um leão, como diziam os amigos e trabalhava muito para
sustentar a família, com dez filhos peraltas e muito barulhentos.
Contudo,
seus passos eram motivos para que nos silenciássemos e parássemos
com qualquer brincadeira, por mais interessante que fosse.
As
refeições eram servidas à hora certa e ninguém poderia deixar
a mesa enquanto houvesse comida no prato.
Era
comum nos reunir nos dias de domingo, logo após o almoço, para nos
contar lindas estórias, nos ensinar a tirar a prova dos nove, traçar
as primeiras letras do alfabeto e fazer cálculos matemáticos. Fazia
isso constantemente, com muita paciência e perfeição.
A
escola era lugar sagrado, ninguém poderia faltar e quando isso
acontecia,
mamãe nos acobertava carinhosamente, nunca deixando que ele percebesse.
Ainda
hoje, trago comigo sua imagem cavalgando pelos campos com a capa gaúcha,
botas de cano alto e chapéu Panamá de aba larga. Enchia-me
de orgulho ao vê-lo recolher o gado, montado no Tupã, seu cavalo
predileto,
de cor ferrugem, com malhas brancas e pelo luzidio. Às vezes ficava,
à distancia, quando tangia o gado com o ferro em brasa e, ao perceber
o medo que sentia, ia me explicando: - É preciso que se marque o gado,
para que não seja roubado do pasto. O mesmo acontece com os cavalos
quando colocamos a ferradura no casco, nada dói, e se faz necessário.
Papai
também era um grande artesão. Preparava cuidadosamente o couro, punha-o
a secar e depois o retalhava em tiras compridas e bem iguais, para então
confeccionar cabrestos, chicotes e lindas rédeas. Com mãos ainda muito
pequenas eu sempre o ajudava, segurando numa das pontas.
Sempre
foi muito exigente, bravo, mas sabia usar sua autoridade com muita
sabedoria.
Com a força do olhar nos fazia reféns...
Éramos
dez filhos, as desordens se multiplicavam e quase sempre alguém estava
de castigo, levando bronca, palmadas ou até mesmo apanhando com vara
de marmelo... Sempre por merecimento, é claro!
Felizmente,
isso nunca aconteceu comigo, pois além de mamãe que amenizava tudo,
eu ainda tinha a doce Paulina, a babá de cor negra, que sempre fora
minha fiel escudeira. Por essa razão, era sempre salva pelo gongo...
Principalmente, quando acompanhava meus irmãos que iam nadar escondido
no rio ou num perigoso tanque, que ficava nas imediações de nossa
casa.
Papai
trabalhava muito, muito mesmo e ainda tinha tempo para nós, para
pescaria,
jogar bocha e baralho com os amigos, filhos de imigrantes italianos
que moravam em nossa rua.
Adorava
festas com muita comida, vinhos, música, dança, discurso e poesia;
por essa razão nossa casa era muito alegre, com muita gente,
principalmente
nas datas mais marcantes. Nunca poderia faltar a tarantela, dança
italiana
que dava início às festas.
À
medida que o tempo foi passando, papai foi se tornando cada vez mais
doce, extremamente carinhoso e compreensivo. Falávamos de igual para
igual e tivemos a oportunidade de dizer-lhe quanto o amávamos, através
de gestos e palavras.
Pajeava
os netos, passeava com eles, dava-lhes presentes, ensinava mágicas,
contava-lhes estórias e incentivava os que tinham talento musical.
Com
o tempo, quase aos noventa, acometido por derrame, foi internado e
acabou
por falecer em meados de novembro, ao raiar do dia, com o cantar dos
pássaros e os sinos anunciando a primeira missa domingueira.
Papai
sempre estivera rodeado pelos filhos e netos, mas quis Deus que naquela
triste manhã somente eu estivesse ali e foi então que percebi
o olhar fixo, o sangue correndo pela ultima vez em suas veias... Meu
irmão que acabara de chegar lhe fez várias massagens, mas o corpo
fora ganhando cada vez mais inércia e por fim, a rigidez mortal.
Fechei-lhe
os olhos, juntei-lhe as mãos, pedi que os anjos o levassem ao encontro
de Deus. Rezei a oração do pai-nosso, acentuando a última frase,
a mais dolorosa até então, da minha vida: - “Seja feita a Tua vontade,
assim na terra, como no céu!”.
Assim ele se foi, mas sua lembrança viverá para sempre em nossos
gestos de honestidade, confiança, justiça e amor, pois a semente que
lançara sobre a terra germinou, criou profundas raízes e se fez árvore
frondosa, com belíssimas flores e frutos que se renovam em muitas
primaveras,
através de sua descendência.